Caro eu,
(Sim, caro eu)
escrevo essa carta hoje, para que saiba que tudo que tentei foi real. Você deve saber que eles tentam, por vezes, acabar com nossos sonhos. Eu demorei a desistir, eu juro.
Sinto-me culpado por saber que sou a causa do seu sofrimento. Viver sem amor e sem sonhos deve ser tão ruim, que nem consigo imaginar motivo para continuar com isso, mas muitos vivem, e você também viverá. Faz parte do sistema.
Até ontem, eu tinha motivos pra olhar para as estrelas. Olhava o céu e implorava por forças pra continuar. Busquei respostas, e nada. Queria apenas saber o motivo disso tudo aqui: Amores não correspondidos, sonhos destruídos, relações sem sentimento, ódio, ganância, guerras. O dinheiro se sobrepôs a tudo e todos. Porque? Continuo sem respostas, espero que as encontre.
Sobre esses dias terríveis, tenho que dizer que tentei ao máximo ser feliz. Acordava por diversas vezes com um sorriso no rosto, e faziam questão de desmancha-lo. "Ora, porque a felicidade? Toma, faça isso, você não tem tempo de ser feliz". Era assim que eu me sentia, sinceramente. Na verdade, comecei a me decepcionar assim que comecei a crescer:
"Escolha uma profissão, algo que ame".
"Quero ser artista".
"Artista? Vai morrer de fome".
E assim, minhas possibilidades foram diminuindo uma a uma, até sobrar umas poucas opções, que na verdade, nem eram minhas. Tentei. Não era o que eu queria. "Que decepção, o fulano não vai ser ninguém na vida". Era assim que me viam, e nem se quer me perguntaram o que EU queria pra mim. "Nós que sabemos o que é melhor pra você."
Você deve lembrar da nossa juventude, não é? Aquela, cheia de jogos.
"Não demonstre o que você sente."
"Isso não, vai parecer desesperado."
"Você tem que fazer exatamente assim..."
"Não."
"Não."
"Não."
Ora, porque não? Porque não posso fazer o que eu tenho vontade? Porque é tão assustador gostar de alguém? Foi assim que deixamos escapar nossos "amores" por entre os dedos.
Se lembra das festas? Pareciam todos uniformizados. Elas, de vestidos curtos e cabelos longos. Eles, relógio, cabelos penteados e muita grana no bolso.
"Oi, qual o seu nome?"
Isso era bem educado. A maioria nem se quer conversava. Beijos e mais beijos. Quem sabe um sexo depois da balada?
"Não quero saber nada sobre você. Obrigado."
E assim perdemos mais quatro horas da nossa vida com pessoas que não se importavam.
Logo, comecei a me perguntar outras coisas. Queria saber o que tinha lá fora. Queria lutar por causas maiores que as minhas, queria ter participação política. Queria formar uma banda que falasse sobre a minha realidade. Queria protestar contra o injusto.
"Para de sonhar".
"Porque você não pode ser normal como todo mundo?"
"Se fizesse alguma coisa importante, não teria tempo de pensar essas coisas."
Puta merda.
Acho que nosso grande problema foi nunca ter seguido o sistema. Como eu gostaria de ter me limitado ao meu grau, sem revoluções dentro de mim. Evitaria ser chamado de "rebelde sem causa", como tantas vezes fui. Nunca quis ser diferente, só queria que respondessem minhas perguntas. E também, se eu não quisesse fazer parte disso tudo, teria algum problema?
Essa carta foi justamente pra nunca se esquecer que você não faz parte deles, nunca fez. Você finge que dinheiro te supre, que a vida que você leva é suficiente. Você se casou com alguém que não ama, trabalha num emprego que odeia, perde mais de uma hora do seu dia no trânsito da cidade. Se esqueceu que amava ir a praia, que amava olhar o pôr-do-sol. Esqueceu de andar pelas ruas da cidade e descobrir que não tem nada para fazer depois do almoço. Você trabalha pra viver, ou vive pra trabalhar? Na verdade, você vive morto, todos os dias. Apesar de tudo, sei que quando a rotina pesa, quando a idade te impede de sonhar, você lembra que poderia ter sido diferente. Eu prometo não desistir de nós, e você promete não esquecer de quem é. Temos um acordo?


